Sexta-feira à noite, tempo frio e chuvoso e eu
entediadíssima sem nada pra fazer. Eu
até tinha um monte de coisas pra fazer, mas não estava afim de nada. Sabe, quando você fica com o tédio mode on
mesmo? Então... Abri 3 jogos e desisti,
não estava afim de ver filme, série, nem ler um livro, pensei eu. Daí comecei a fuçar em uns arquivos perdidos
no micro e achei um com livros em pdf e no Word mesmo e vi um que eu estava com
vontade de ler a tempos mas faltava coragem. Desonrada. Abri o arquivo e vi, oba, só 114
páginas. A curiosidade venceu a preguiça e comecei a ler.
Enchi a paciência do Raphael. Um fato ruim sobre mim é que
lendo um livro (de não ficção, normalmente) ou um filme, eu não calo a boca!
Huahuahuaha Começamos a conversar sobre as tradições de regiões que seguem o
islamismo. (Um parênteses longo aqui, não sou especialista no assunto e alguém
me corrija se eu estiver errada, mas pelo que eu entendi, o muçulmano é quem
segue o islamismo! É que eu mesma fui ver sobre isso porque acho confuso
pakas), daí quando engrenei no livro, fiquei nos blá blá blá surpresos, com ele jogando e eu na cabeça dele, Rapha,
olha isso, não acredito, e ele muito educado como sempre, sério amor? Nossa,
não sabia. Quando no fundo, deve ficar
louco comigo!
Enfim, detalhes à parte, cerca de 3 horas depois estou eu,
atônita, lendo a última página do livro.
Como eu sei que quase ninguém vai querer disponibilizar
tempo para ler a história, vou resumi-la abaixo, mas antes falarei um pouco
sobre como é a cultura lá.
Este livro é autobiográfico,
conta a história de Mukhtar Mai, com a colaboração de uma jornalista francesa
chamada Marie-Thérèse Cuny, já que como a maioria esmagadora das mulheres no
Paquistão, Mukhtar não sabia ler nem escrever.
No Paquistão, e não só lá, existe
o que eles chamam de castas. Que seria uma espécie de separação ou delimitação
entre classes sociais. Não é tão simples como classe A e B, aqui para nós. Acho
que seria melhor entendido como, me perdoe a péssima analogia, nós tivéssemos
uma hierarquia, com presidente e operários. Imagine que eles acreditem em
coisas diferentes e que não é democracia e não são somente essas duas divisões,
creio eu. O presidente manda e os operários obedecem. Existe a casta superior e
a inferior. Nós, “ocidentais”, já nos deparamos com isso. Basta ter como
exemplo o nacionalismo extremo do nazismo. Os arianos, seres humanos superiores
e os judeus que nem eram considerados seres humanos. É mais ou menos assim que
eles vivem. O que a casta superior decide, a casta inferior faz. Não existe
interação nem insubordinação sob risco de retaliação e morte. É uma relação
baseada na submissão, em honra, em tradições antigas, em vingança. Lá impera o
olho por olho.
E no fundo de tudo isso, estão as
mulheres. Elas não freqüentam as escolas. Não sabem ler e escrever. A partir
dos 6 anos, ajudam nas tarefas domésticas e de sustento da casa. Não são
autorizadas a falar com os adultos, não podem falar com meninos, nem brincar
com os próprios primos, por exemplo. Quando mais velhas, não podem, em hipótese
alguma, olhar para um homem ou falar com ele; ao passar por um, elas precisam
baixar os olhos. São vítimas de casamentos arranjados, muitas vezes prometidas a
famílias, mesmo antes de nascerem. Por motivos religiosos, financeiros,
políticos, enfim por interesses entre a família da noiva e do noivo. No
Paquistão, a mulher não pode escolher se casar por amor. Ou seja, ela não pode
escolher com quem casar. Sob o risco de ser julgada e condenada por adultério –
por ter sido prometida a outro, entre outras coisas -, pena de morte lá. Quando
não matam a mulher que escolhe esse caminho, matam o homem que “desonrou” a
família dela. Elas aprendem algumas coisas básicas e que regem as suas vidas.
Silêncio, submissão e respeito pelo homem. Seja pai, irmão, marido, conselheiro
espiritual da aldeia, enfim a qualquer um.
Em geral, uma mulher nessas
regiões vale menos que uma cabra. Ela é usada para apaziguar, como objeto de
troca ou ressarcimento. Ela nunca toma parte nas decisões e só é informada
quando deve fazer algo. Por exemplo, seu casamento é data tal, vá até tal lugar
e faça tal coisa. É assim que funciona.
E as mães não conversam com as filhas, só dizem como devem agir, faça
isso, não faça isso. Elas vão para o casamento sem qualquer noção de nada, de
sexo, do que devem fazer, só sabem parir porque elas também ajudam as irmãs e etc.
e que devem obedecer e servir o marido e os futuros filhos homens.
Lá, eles meio que vivem entre
três sistemas. O legal (governo – que envolve advogados, extremamente
dispendioso e que a maioria da população não tem a menor condição de bancar e
ter acesso), o religioso (que oficialmente rege tudo) e a Jirga. A Jirga é uma reunião com pessoas de ambas as castas de uma
aldeia. Ou seja, são pessoas que tentam organizar o funcionamento de uma aldeia
ou região. Eles fazem negociações (não justiça, que fique claro), entre
famílias que estão com problemas, para evitar que elas se tornem inimigas. Eles
resolvem os chamados, crimes de honra. Exemplos (Reais!!!!). Duas famílias
vizinhas começam a brigar porque o cachorro de uma delas late muito. O fulano
da família x acaba matando o ciclano da família y. Eles chamam a polícia? Não.
Alguém vai preso ou julgado? Dificilmente. A jirga entra em ação e negocia um
trato com as famílias. A família x dá 2 garotas para a família y como forma de
compensar e pedir desculpas pelo que ocorreu. Uma de 11 e outra de 6 anos. A de
11 foi dada a um homem de 46 anos e a de 6 para um menino de 8! É assim que
funciona para tudo. No geral, a punição
(ou arranjo) vem para uma mulher de três formas. Estupro coletivo, ao ser vítima disso é
socialmente esperado que a mulher ao ter perdido sua honra se suicide. Dada em
casamento. Apedrejamento. A Jirga na prática se transformou num organismo com
vida própria, interessada em negociações e agindo completamente à margem da
religião e das leis do Islamismo e do que prega o Alcorão.
Ok, então esse é o panorama geral
da cultura de uma região afastada da capital e do centro urbano no Paquistão.
Um trecho
inicial e simples que resume um pouco tudo.
Se você quiser ler o livro, pare de ler aqui, spoiler:
“Sou eu, Mukhtaran Bibi,
da aldeia de Meerwala, da casta dos camponeses Gujjar, que terei de enfrentar o
clã da casta superior dos Mastoi, agricultores poderosos e guerreiros. Terei de
pedir-lhes perdão em nome da minha família.
Perdão pelo meu
irmãozinho Shakkur. A tribo dos Mastoi o acusa de ter “falado” com Salma, uma
menina do clã deles. Ele tem apenas 12 anos, e Salma já tem mais de 20. Nós
sabemos que ele não fez nada de mal, mas se os Mastoi decidiram assim, nós os
Gujjar, temos que nos submeter. Sempre foi assim.”
No caso dela, o irmão sumiu,
descobre-se que foi preso, espancado e sodomizado e é montada uma armadilha
para ela, uma mulher de 28 anos, honrada e respeitada na aldeia, ir diante dos
acusadores para pedir perdão publicamente. No entanto, eles nunca pretenderam
perdoar a família, pois nada realmente aconteceu e diante de todo mundo, a
arrastam para um alojamento próximo e durante horas, 4 homens se revezam em
estuprá-la. Horas depois ela é jogada, com as roupas rasgadas, machucada, no
meio da rua.
Inicialmente, ela pensa em se
matar para limpar a honra da família. Mas aos poucos um sentimento de raiva e
revolta se apodera e ela consegue se agarrar a vida com um desejo de vingança e
de justiça. Quando sua família consegue,
finalmente, juntar o dinheiro exigido pelo clã superior para entregar à polícia
para soltar o irmão, ela é perguntada pelos policiais se tudo está bem. Nesse
momento, ela decide lutar. Acredito que
ela deu sorte porque a família, o núcleo dela pelo menos, apoiou-a. A polícia
monta um relatório falso eximindo todos os culpados e a faz assinar com a
digital de seu polegar. O que a prejudica muito durante o processo todo porque
é acusada de mentir.
A história conta todo o martírio
pelo qual ela passou. A dor, a humilhação, a luta, verdadeiras peregrinações
que ela fez a tribunais, delegacias, organizações, etc. A sorte que ela teve do
caso dela ter parado na mídia. As tentativas de tudo ser acobertado e diminuído
pelo próprio governo que deveria protegê-la, já que as práticas que ela sofreu
são oficialmente proibidas.
Ela foi acusada de tudo; de
interesseira, de ter uma conta bancária, de ter querido ser estuprada, de
terrorismo contra o governo, de querer fama, manchar a imagem do país e
infindáveis coisas mais. Mas sempre se manteve e se mantém firme até hoje.
Quando ela finalmente conseguiu
levá-los à justiça, uma corte internacional declarou os 6 principais suspeitos,
culpados e condenados à morte. Eles entraram com recurso e um segundo tribunal
converteu a pena de 1 para prisão perpétua e inocentou os outros acusados por
falta de evidências e inconsistências na investigação policial. Houve novo
apelo, por parte dela, e mais um julgamento, adiado até abril do ano passado,
2011. Onde se manteve a decisão de prisão perpétua para um e inocência para
todos os outros acusados.
(Devido a uma lei no Paquistão,
um estupro só é provado se for confessado pelo ou pelos acusados e/ou se for
confirmado por 4 (quatro!) testemunhas oculares, honrosas, confiáveis,
respeitáveis e seguidoras do Alcorão). Como os 4 que a estupraram jamais
confessaram e ela foi levada para longe dos olhos das pessoas da aldeia, a
Suprema Corte decidiu descartar o registro de todas as testemunhas e se
baseando nos buracos da investigação, devido aos anos decorridos (fato ocorrido
em 2002, julgado em 2011), a corrupção, a alegação de inocência dos acusados e
mais importante, da alegação, de uma banca composta por juízes, que estava
escuro, à noite, e que a mesma não poderia ter habilidades para reconhecer e
ter certeza de que aqueles 4 homens eram culpados.
Com todo esse absurdo, do início
ao fim, o governo não só não a ajudou como acobertou e acoberta todos esses e
outros crimes hediondos que ocorrem dentro do seu território com a escusa e infame
desculpa de manter uma imagem perante o mundo. É tão descabido que para mim não
faz nenhum sentido.
Agora a vida de Mukhtar continua
difícil como sempre foi. Ela manteve a escola que criou e com ajuda estrangeira
de ONGs e empresas, criou novas escolas e é detentora da única escola para
garotas em toda a região onde mora e arredores. Vive com medo, pois seus
carrascos estão livres e moram a cerca de 100 metros de sua casa e de sua
primeira escola. Acabou se tornando a segunda esposa do policial que
primeiramente tirou seu depoimento, por pressão dos familiares. E em dezembro
de 2011 deu à luz a um menino.
Eu realmente espero que essa
realidade, tanto lá como em outros países, um dia mude. Que essa esperança não
seja uma utopia e que a luta dela não tenha sido em vão. No link abaixo, conta
um pouco da história dela e no final há 3 endereços. Dois deles são e-mails
onde pessoas do mundo todo mandam seu apelo ao governo paquistanês para que
reabra o seu caso e que haja novo julgamento. Se quiser, faça sua parte! Não
custa nada, perto do que ela fez!